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Outro dia me fizeram uma pergunta boa: “De onde vem o seu humor?” A questão foi feita pelo professor Pedro Meira Monteiro, num diálogo que travei com seus estudantes de doutorado em tradução na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos1. Havia um preâmbulo, e meus textos eram muito duros e críticos, mas tinham humor e ironia na hora certa. Pois bem, a indagação foi feita em 9 de novembro de 2020, e eu só pude respondê-la por conta de algo acontecido no dia anterior. Mais uma demonstração, entre tantas, de que quem zela por mim não dorme.

Era pouco mais de meio-dia, e eu me dirigia a uma agência dos correios para despachar livros num horário de pouca frequência. O caminho é uma longa reta cheia de ruas transversais e, ao me aproximar de uma dessas encruzilhadas2, vi um homem negro, como tantos outros, pedindo algo a pessoas dentro de carros parados no semáforo. Na minha vez de atravessar, o sinal abriu. O homem dirigiu-se à calçada e me mostrou um texto com caligrafia bem desenhada numa caixa de papelão aberta. Cumprimentei-o de volta e ele disse mais alguma coisa que não entendi, mas percebi o sotaque e perguntei de onde ele era. “Eu sou d’Angola.” “E você está aqui há muito tempo?”, questionei-o. “Cheguei há três meses, minha irmã. A vida está muito difícil e estou a tentar algum dinheiro para comprar um caixa de garrafas d’água para vendê-las no sinal. São 10 reais da água e 4 reais do gelo. Eu tenho dreads também”, me disse enquanto afastava a touca para me mostrar os cabelos de raízes que crescem para cima, “mas deixo-os guardados, você sabe”. Sim, eu sabia. “De quanto você precisa, meu irmão?” “Ah, irmã, se eu tivesse 20 reais, eu abriria uma loja.” E nós dois rimos nosso riso mascarado embaixo daquele sol forte. Dei a ele o dinheiro3 para abrir a loja, lhe desejei sorte e disse que ele era bem-vindo a este país, que também era dele, meu parente.

Ali, numa rua do Bom Retiro, bairro multicultural do centro de São Paulo, debaixo do sol que também vibra em Angola, nossa capacidade ancestral de produzir infinitos se revelou para nós dois, gente africana separada pelo tráfico atlântico. Gestamos essas tecnologias soprando a forja de Ogum com a força iansânica, o vento nos colocando em movimento e jogando o sofrimento na fogueira de Xangô.

Assim, sobrevivemos, ao construir isso que em toda a diáspora negra chamamos de africanidades e que merecemos ver nos livros, na literatura, nos acervos das bibliotecas, para que possamos ler o mundo pelas lentes de alguém que, mesmo numa situação adversa, num país imaginado a partir de telenovelas que mostram essa terra de pindorama como um lugar promissor, mas que se desnuda como um lugar que não lhe permite sequer deixar à mostra os cabelos que escolheu ter. Nesse lugar esse homem consegue “montar” uma loja com 20 reais.

Tenho um livro de contos intitulado Um Exu em Nova York, e é comum me pedirem para explicar o título. O nome da obra é um batismo, uma insígnia de distinção no mundo, em meio a outras, uma forma de nos singularizar, mas pode indicar também pertencimento, filiação, linhagem.

Diáspora africana é encruzilhada, confluência de forças, disputa pela sobrevivência, inventividade e criatividade para não morrer, invenção de África possível para seguir vivendo e existindo.

Meu Exu está em Nova York porque, além de esse ser um título bom e intrigante para quem não consegue ver a diáspora africana além de lugares tradicionalmente negros e pouco high-tech como Nova Iguaçu (RJ), Chapada do Norte (MG), Salvador, São Luís, Santiago de Cuba ou Havana, Porto Príncipe, no Haiti, e Savannah (Geórgia, EUA), ele está mesmo em Nova York: é só olhar com olhos de ver para conectar voleios e confluências de todas as Áfricas.

Do lugar de onde meu irmão angolano veio hoje, eu vim ontem, e lá, antes de nos separarem, nós dois bebemos da mesma fonte encantada que nos deu superpoderes para produzir infinitos e sobreviver de cabeça erguida à opressão.

Referências:

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

SILVA, Cidinha da. Um Exu em Nova York. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2018.


Cidinha da Silva
é mineira de Belo Horizonte, autora do premiado Um Exu em Nova York (Pallas Editora, 2018), de #Parem de nos matar! (Editora Jandaíra, 2016) e do juvenil Os nove pentes d’África (Mazza Edições, 2009), entre outros livros.