Buscar por:

[searchandfilter fields="search,category_events" types=",checkbox,checkbox" headings=",Categories,Tags" search_placeholder="" submit_label="Pesquisar"]

 

– Quieres saber de una cosa, Compay? La música de mi país es la más grande del mundo. Incluso, más grande que el jazz.

– Que isso, Seu Valdez!? O samba é que é o maior: é tri, é tetra, é pentacampeão, ô, coroa! E é primo do jazz, como diz a Alcione. O senhor já viu a quantidade de samba que tem? Samba-enredo, samba-canção, samba-rock, samba-reggae… É uma cacetada, meu tio!

– Pero, yo no veo ninguno músico de jazz tocando cavaquiño, pandereta, cuíca… Afora del Brasil, nadie conoce lo que es la samba. Pero el son afrocu’ano todo el mundo lo conoce.

Esse papo, mais que oblíquo, está rolando numa tarde morna de sábado na boa zona norte carioca, na Praça das Nações, no “Boteco da Ônu”. A casa tem outro nome, mas a galera gosta mesmo é de chamá-la assim, por causa da semelhança de sua proprietária com a viúva do saudoso John Lennon, apesar da pele marrom. Trata-se de um estabelecimento cosmopolita, como se vê. Onde se discute de tudo um pouco. Como agora, nesse debate entre o Zeca do Agogô, ritmista da União da Ilha, e o senhor Veránio Valdez, cubano formado em Ciências Biológicas/Botânica que migrou para o Brasil na condição de babalaô, no início dos anos 1990. O terceiro da mesa é o angolano Agostinho Candengue, estudante de musicologia na UEZO (Fundação Centro Universitário Estadual da Zona Oeste), baixista de uma banda de afro pop nos fins de semana, e que agora faz coro ao cubano Valdez:

– O mano Zeca que me perdoe, mas eu dou razão ao mais velho, Valdez. O samba pode ser primo do jazz, irmão da rumba e tudo o mais. Entretanto, em meu país nem em Cuba, onde já estive em estudos, nenhum de nós vai ver p’ssoas a ouvir samba como ouve o jazz, Nem nos Estados Unidos vai ver alguém a conhecer o samba como conhece a música dos nossos camaradas afro-cubanos. Isso merece alguma reflexão, pois não?

Agostinho, neto do primeiro “viola baixo” do famoso grupo Angola Ritmos, tem toda a razão. Brasil, Cuba e Estados Unidos são os maiores criadouros da música afro-diaspórica. E o que ele diz é pura verdade. Porque, desde o início do tráfico de escravos até o século XIX, a África subsaariana foi perdendo gradativamente sua substância cultural, pela morte ou exportação maciça de seus melhores filhos. Em 1878, com o Tratado de Berlim, o colonialismo completou seu intento de submeter grande parte dos africanos aos usos, costumes e valores europeus. Entretanto, a partir dos anos 1950, com boa parte das colônias europeias se tornando politicamente independentes, mas sem liberdade econômica, a África, aos poucos, voltou-se também para o exterior. E musicalmente ela encontrou, dominando a cena da música popular internacional, nada menos que a rumba, o mambo etc., seus “netos” nascidos na América, os quais os EUA, também uma potência, reelaboravam e exportavam. Então, num fenômeno social bastante interessante, a indústria musical global prova e gosta desses “quitutes” afro-caribenhos; e cria, com eles, o juju, o high life, o merengue angolano, logo rotulados como afro pop. Nasce aí o conceito de world music, que não define um gênero musical, mas, sim, uma grande família onde se encontram reunidas todas as músicas ainda não inseridas no cardápio da música comercial global. E o rótulo abrange também as músicas tradicionais, folclóricas, da Europa e das Américas.

– Em África, temos ou tivemos lá, por ordem de chegada: o Fela Kuti, nigeriano de Abeokutá… Salif Keita, filho do povo Mandinga, do Mali… E o senegalês Youssou N’Dour, filho de um griô das vizinhanças de Dacar. As corporações imperialistas botaram a música deles pra rodar no mundo todo. E aí o jazz esteve a tirar uma casquinha também…

O Candengue sabe das coisas. Mas deixou de dizer por que, no preparo da iguaria, tendo o jazz como ingrediente principal, na hora do tempero, os chefs da indústria fonográfica só usaram o afro-cubano. E isso assim se deu porque a música cubana sempre se manteve, como até hoje, mais parecida com a música tradicional africana, principalmente pela percussão, dos tambores, ferros e madeiras, à frente dos metais e palhetas.

Por aqui, no país do futebol, o samba urbano crescia com a “Era do Rádio”. Mas pagava muito caro por esse crescimento, pois sua africanidade ficava restrita ao nome – que vem de Angola, como o Candengue gosta de frisar – e ao ritmo das escolas de samba e das batucadas de puro lazer. Para “impor respeito”, o samba foi obrigado a usar paletó e gravata. Como o grupo Modern Jazz Quartet, por vontade própria, usou tempos depois. Mas, em vez de ganhar respeitabilidade, o samba ganhou uma tremenda diluição, em forma e conteúdo. Para entrar na festa das grandes corporações, nosso gênero-pai-de-todos teve que ser desafricanizado.

Zeca do Agogô tem pouco estudo, mas não é bobo, não! Fala pouco, mas observa muito. E aquele papo descontraído, daquela tarde de sábado – aqui no Boteco da Ônu, onde rabisco estas linhas –, acabou se repetindo semanalmente, numa espécie de simpósio ou seminário. Numa dessas, ele chegou com uma novidade.

– Pois é, meus camaradas! Estou eu lá, num biscate, quando escuto na televisão um cara cantando um samba em inglês. Estranhei aquilo e perguntei ao patrão o quê que era aquilo. Aí, fiquei sabendo que era um canal de música da “Gatonet” e que aquilo era jazz. Mas eu reconheci o samba. Da gravação do João Gilberto: “Só danço samba, só danço samba, vai, vai, vai, vai, vai…” E depois entrou outro, agora num português de alemão: “Pobre samba meu”. Então, eu morei na jogada. A malandragem diz que é jazz, porque jazz é música boa e de bacana. Mas no fundo é samba mesmo. A única diferença é que não tem pandeiro nem cavaquinho, mas piano, contrabaixo e bateria. É engraçado, né?

Apoiado, Zeca! Pois, desde que surgiu, a bossa nova, que na época era chamada de “samba moderno”, mostrou um estilo batizado como “samba-jazz”. Essa vertente consolidou a aproximação com o bebop, que já era experimentado no ambiente das gafieiras desde algum tempo atrás, revelando ou confirmando o prestígio de grandes instrumentistas, como, por exemplo, os saxofonistas Cipó e Juarez Araújo; trombonistas como Astor e Maciel; o guitarrista Bola Sete; o trompetista Julio Barbosa; os baixistas Luiz Marinho e Tião Neto; os bateristas Edson Machado, Milton Banana e Wilson das Neves… e muitos outros. Com tudo isso, a indústria musical acabou fazendo do jazz não só a grande música da diáspora africana nas Américas, como também a mais globalizada do planeta.

E o jazz também teve a sua própria diáspora, como o nosso Agostinho Candengue expôs em uma das sessões do “simpósio”. E ela foi protagonizada sobretudo pelo blues, que floresceu na região do Delta do Mississippi, nos Estados Unidos. Tendo seus primeiros registros fonográficos na década de 1920 (a mesma do samba no Brasil e da rumba em Cuba), o blues acompanhou as migrações do povo negro do sul dos EUA em busca de melhores condições de vida. Nessa caminhada, ele se recriou em inúmeros estilos, até chegar a Chicago, onde os estilos nascidos nas águas e mágoas do Mississippi fundiram-se num estilo sintético urbano, resultante das ondas migratórias, primeiro cautelosas, dos anos 1920 aos 1930, e depois massivas, confiantes, após a Segunda Guerra Mundial.

Tudo isso, não exatamente como escrevi – pegando num livro aqui e noutro lá –, mas com o mesmo espírito, foi exposto e discutido em muitas “sessões”, no “simpósio”, pelo angolano Agostinho com o Zeca do Agogô e o venerável Veránio Valdez no Boteco da Ônu. Aquela primeira discussão, aparentemente sem sentido, acabou semeando entre os três uma grande amizade, e até mesmo considerável acréscimo nos conhecimentos de cada um. Tanto que o Zeca, que agora estreou na condição de papai, registrou a filha, uma linda menina, com o nome de… Jázzpora Koltrêine dos Santos.

– Tadinha!… – resmungou a Ônu, rangendo os dentes, pois detesta os nomes que os pobres inventam. Mas o oráculo Ifá, consultado pelo babalaô cubano, aprovou a escolha com um opolopo irê (muita felicidade!) deste tamanho.


Nei Lopes
é compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas, no continente de origem e na diáspora africana. Notabilizou-se como sambista, principalmente pela parceria com Wilson Moreira. Escritor publicado desde 1981, desde então vem produzindo, além de contos, romances e poesia, uma vasta obra de estudos africanos, de cunho eminentemente pedagógico, centrada em obras de referência como dicionários e uma enciclopédia.